segunda-feira, janeiro 26, 2009

Do Beco à Errância






Dois livros que chegaram hoje à escola. Dois livros para viajar. O dia de embarque é na quarta-feira.



Um livro

Um livro escreve-se uma vez e outra vez.
Um livro se repete. O mesmo livro.
Sempre. Ou a mesma pergunta. Ou
talvez
o não haver resposta.
Por isso um livro anda à volta sobre si mesmo
um livro o poema a prova a frase
tensa
a escrita nunca escrita
a que não é senão o ritmo
subterrâneo
o anjo oculto o rio
o demónio azul.

Um livro. Sempre.
Um livro que se escreve e não se escreve
ou se rescreve junto
ao mesmo mar.
Um livro.Navegação por dentro
errância que não chega a nenhuma Ítaca.
Um livro se repete. Um livro
essa pergunta
incognoscível código do ser.
llllllllllllllll
Metáfora de cornos e pés de cabra.
Um livro.Esse buscar
coisa nenhuma.
Ou só o espaço
o grande interminável espaço em branco
por onde corre o sangue a escrita a vida.
Um livro.

Manuel Alegre, Livro do Português Errante
llllllllllllllllllllll

O Tombo da Lua

UMA OCASIÃO, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava. Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta – sói dizer-se – e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe competia. Provavelmente, o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da porta, enquanto acabava um saquinho de tremoços. O Zé Metade é assim chamado desde que lhe aconteceu aquela infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caíu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto, busto para um lado, o resto para o outro. Daí por diante ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixote de madeira com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as manhãs um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça! Em que me viste ó’nha mãiiii...

Mário de Carvalho, Casos do Beco das Sardinheiras

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