domingo, março 22, 2009

"Esta noite improvisa-se" é também uma história condensada dos Artistas Unidos

Uma das coisas que fui descobrindo enquanto espectador de teatro é que podemos ter saudades de espectáculos com a mesma aflição com que lamentamos a distância de um amigo ou de um familiar.
E são muitas as saudades que tenho dos primeiros espectáculos dos Artistas Unidos: o António, o Prometeu, o Fim, o Coriolano, o Fatzer, o Navio... Eram espectáculos imensos, corais, polifónicos, eléctricos e monumentais. Havia neles um frenesim partilhado entre o público e os criadores - como se todos dançassem uma valsa estonteante.
Em "Esta Noite Improvisa-se" regressa-se a essa valsa. Durante a primeira hora e meia de espectáculo (incluindo o intervalo) há de novo a polifonia e o caos orquestrado dos primeiros anos (1995-2000) dos AU. Com um ritmo implacável e contagiante, cerca de trinta actores em palco levantam as personagens do texto de Pirandello, usando a auto-ironia e a alegria pelo jogo como denominador comum da representação.
O termo "pirandelismo" é hoje vago sinónimo de temas como a comédia social, o teatro-dentro-do-teatro, a força do inconsciente, da loucura e do absurdo; e de lugares como uma tendência para a racionalização e pela obediência a lógicas individuais em detrimento das lógicas sociais. Em "Esta Noite Improvisa-se", além do óbvio jogo do teatro-dentro-do-teatro, a tragédia da família La Croce insere-se precisamente na exploração de uma lógica individual que não obedece à moral vigente (característica tão mediterrânica!). Assim se explicam a semi-prostituição que a mãe (esplêndida Lia Gama) obriga as suas filhas (joviais Sara Belo, Andreia Bento, Cecília Henriques e Sílvia Filipe) e os peculiares traços da sua harmonia familiar, onde não faltam coristas e amantes. Mas este é também um caminho que Jorge Silva Melo usa para chamar a palco os traços de uma Lisboa antiga, fadista e gaiata, com marinheiros, brigas, ligas e facas. Com efeito, a nostalgia será um traço estruturante para a encenação: nostalgia pelos anos primeiros dos AU, por outras encenações do texto de Pirandello, pela história do teatro e do cinema europeu, em suma, por uma Europa e por uma vida que não existe mais e que, no teatro, se pode ainda fingir que existe (a composição perfeita de Cândido Ferreira evoca figuras que vão de Fellini a Kusturica, passando por Vasco Santana, p.e.).
Mas a fársica tragédia da família La Croce é inserida num jogo do teatro-dentro-do-teatro onde é protagonista o encenador Hinkfuss, que António Simão compõe com uma graça e um estilo de auto-ironia inexcedíveis. Simão assume-se como um dínamo carismático e cativante de todo o espectáculo (e quando faz play-back da voz-off de Silva Melo, que vai dizendo algumas didascálias do texto de Pirandello, a referência auto-paródica à figura do encenador não podia estar mais explícita...) Cenograficamente, o palco é dominado por um enorme bloco vermelho que, movimentando-se, cria várias entradas e possibilidades de movimentação. Mas cria sobretudo a tessitura para a projecção de várias sombras de vários actores e em vários momentos, dando a tudo uma atmosfera espectral e cinemática. A ocupação do espaço respeita a provocação pirandeliana (há actores entre o público, criando a confusão entre a realidade e a ficção), mas obedece também à lógica nostálgica (os actores-espectadores estão sentados no palco - nós assistimos a uma encenação de uma provocação que teve lugar no passado).
"Esta Noite Improvisa-se" é também uma história condensada dos AU. Se a primeira hora e meia herda a polifonia dos primeiros espectáculos do grupo, a última meia hora atesta a evolução deste colectivo para uma intimidade de câmara (leia-se de cave, de convento). Em palco, somente dois actores, Sílvia Filipe (Mommina) e Pedro Lacerda (Rico Verri) que compõem, respectivamente, a mulher que sacrifica os seus sonhos de viver no palco pela prisão conjugal, e o seu marido. E aqui, Sílvia Filipe, muitíssimo bem socorrida por Lacerda, é absolutamente magnífica. A lentidão que substitui a vertigem inicial torna-se febril e inquietante. E depois disso, depois da mulher que morre a explicar o que é o teatro às filhas, não apetece mais nada.

Rui Pina Coelho, in Ipsilon, Quinta-Feira, 12 Março 2009

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