quinta-feira, setembro 25, 2008

Eu queria fazer este azul

Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul, pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de oiro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz — eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé — e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
-------------------
Nuno Júdice, Meditação Sobre Ruínas, Quetzal 1994
lllllllllllllllllllllllllllllllllllll
-------------------------------------
Era bom poder conseguir este azul, assim, que conservasse a memória do tempo, que resistisse à ruína de hoje. E uma porta. Uma porta para fora do impossível disto tudo. Uma porta para dentro de um livro onde pudesse perder-me. Pois é, meninos, o azul pose ser inacessível a um tempo sem tempo para "imitar o céu", mas a porta dos livros está aberta.

Sem comentários: