quarta-feira, outubro 31, 2007

O amor na casa da poesia





No contexto da exploração do tema de Área de Projecto – a sexualidade – os alunos do 9º A leram poemas da literatura portuguesa que se cruzam com a expressão amorosa e/ou erótica. Da poesia ao amor, do amor à pluralidade das vivências da sexualidade. Para além de qualquer preconceito de género, em busca do amor e da poesia, ambos simultaneamente diversos e universais na humanidade dos sentimentos e emoções que convocam: a descoberta, o encantamento, a partilha, a exaltação do desejo, a paixão, a decepção e o sofrimento da ruptura. Deixamos aqui alguns desses poemas, ilustrados por quadros de Francis Bacon, Egon Schiele e Gustav Kilmt.

Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou
Ruy Belo, Antologia Poética
Um amor como este
não pede mar ou praia:
somente o vento leste
erguendo a tua saia.

o resto é o futuro
além, à nossa espreita:
doce fruto maduro
na hora da colheita.
Daniel Filipe, A Invenção do Amor e Outros Poemas

Se pudesse pintava o céu de preto
e depois punha-me a olhar as estrelas através dos teus olhos
Jorge de Sousa Braga, Balas de Pólen

aos vinte e três outonos apaixonei-me doze vezes
e nem sempre pelas mesmas almas
mas sobrevivi a um coração míope
Pedro Sena-Lino, Biofagia

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andersen, Obra Poética I

Era de inverno, em Vila Real. A neve
cobria as ruas que levavam ao liceu.
Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal
no tampo do vidro, o vapor da respiração
ligava-nos entre as conversas de mesa indiferentes.
E querias olhar para mais dentro de mim.
Os pombos escondidos nos beirais tapavam
a cabeça na plumagem de chumbo, cor do céu.

Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos
em cada um dos nossos livros a primeira letra
dos nossos nomes, de modo a desenharem
uma única letra que não havia em alfabeto algum.
Que bem que estávamos tão mal ali sentados,
a faltar às aulas, nessa primeira vez
em que nos acontecia, sem sabermos, um amor.

Tu não ias adivinhar as leis secretas
que já nos separavam. Tu não podias
lutar na via de sangue da minha vida.
Mas sempre que tombar neve em Vila Real
e desceres a avenida a caminho do café
de alguma destas coisas, quem sabe, te hás-de lembrar.
Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes, Aluviões

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus fIancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão.

Só por dentro de ti rebentam fIores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rota mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca.
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
António Franco Alexandre, Duende

Por dentro da penumbra
o cheiro a fruta
e o gosto do feno no afago

Os gomos do gozo
que se afundam:
pétala por pétala no poço do teu hálito
Maria Teresa Horta, Poesia Completa II

Cala-te, a luz arde entre os lábios,
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à lingua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.
Eugénio de Andrade, Antologia Breve

Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos

desaparecem em Agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até Setembro, quando regressam

trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.
Maria do Rosário Pedreira, in Anos 90 e Agora

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando.
Florbela Espanca, Sessenta Sonetos de Amor

Ao receber a notícia
primeiro senti a cabeça vazia,
uma espécie de lodo
a enrolar-me o cérebro.
Depois pensei na traição
da vida. Olhei em redor;
a casa em ordem, o silêncio
e as fotografias. Sucederam-se
os gestos quotidianos,
lavei o rosto e a água
quente deu-me a impressão
de "me curar da mentira
[de um amor que acaba".

A noite foi difícil,
pensei até que não dormiria.
Mas não, o dia chegou
e como habitualmente tinha
fome, preparei-me
para viver, embora
com a impressão de que algo
se quebrou dentro de mim.
Não morri e reparei
que continuava a chover.
Isabel de Sá, Repetir o Poema

segunda-feira, outubro 22, 2007

O "senhor" Gonçalo


Gonçalo M. Tavares ganhou o Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa 2007 com o livro "Jerusalém", editado em Portugal em 2004 e lançado no Brasil em 2006 .
Esta mesma obra já tinha sido premiada em Portugal: em 2004, recebeu o Prémio Literário Ler/Millenium bcp e, em 2005, o Prémio José Saramago. Agora recebe um prémio internacional, no âmbito da lusofonia.
Este é um livro denso, onde se cruzam sentimentos extremos e que evoca os mundos sombrios da dor, do vazio, do mal, da violência, da invisibilidade.

Europa 02
(I)
Excluídos

Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoas, até que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.

(Jerusalém, pag. 128)

sexta-feira, outubro 12, 2007

O Bairro III



Um estranho bairro





Um dia, ia eu visitar a minha prima, passei por um bairro em que tudo era estranho, começando pelas casas, pois cada uma tinha o nome do seu proprietário na porta.
Quando ia a descer a rua, vi que a casa do senhor Brecht estava com as portas abertas. Tive curiosidade de saber o que ele estava a fazer. Entrei e na sala lá estava ele, sentado numa cadeira, com umas vinte pessoas à sua volta. Parou de falar e convidou-me a entrar e a sentar-me à frente dele. Eu assim fiz. Ele estava a contar histórias que me faziam rir, mas ao mesmo tempo despertavam em mim sentimentos de tristeza.
No final, olhei para trás para me ir embora e dei-me conta que, por magia ou não, a sala estava cheia de gente. Mas lá consegui sair no meio daquela confusão toda.
Chegando à rua encontrei à frente da sua casa o senhor mais indeciso que eu poderia imaginar, o senhor Valery. Avancei uns passos e ouvi o senhor Walser, irritado com a confusão das obras em casa dele, a gritar que não era assim e que nunca mais compraria uma casa nova. Na verdade ouvia-se uma grande barulheira vinda da casa dele.
Uma coisa era certa: naquele bairro nada era normal. E, no meio das histórias do senhor Brecht, das indecisões do senhor Valery e dos barulhos e dos gritos que vinham da casa do senhor Walser, não consegui encontrar a casa da minha prima, porque, afinal de contas, ela nem morava naquele bairro…

Rafaela Dinis, 9º A


A Solução

Hoje decidi ir passear com a minha tia até ao Bairro, pois estávamos fartas de estar em casa e, como ela é corcunda, faz-lhe bem caminhar.
De tanto andar… já andávamos com fome, foi então que desatámos a correr para o café que estava ali parado, que por acaso pertencia a um amigo dos meus avós, ao Sr. Elliot. Ao sairmos, deparámo-nos com o Sr. Voltaire. Os olhos dele ficaram muito sérios a olhar para a minha tia, mais precisamente para as costas dela e começou logo a dizer que arranjaria uma solução.
O Sr. Voltaire fê-la andar com um baraço atado da cabeça aos pés, só que isso não deu resultado, muito pelo contrário. Numa nova tentativa, decidiu andarem os dois presos pelos braços, de costas voltadas um para o outro, só que isso metia-lhes impressão, pois, assim apegados, não eram livres, nem podiam ir onde queriam…
Desistimos e fomos para casa dormir, porque já estávamos cansadas, com dores de cabeça e a minha tia com as costas dormentes. Enquanto nós dormíamos, o Sr. Voltaire pensava toda a noite numa solução. Foi então que lhe veio uma ideia brilhante à cabeça. De manhãzinha, fomos passear novamente até ao Bairro e o Sr. Voltaire apareceu todo entusiasmado, a sorrir e a gritar:
- Consegui, consegui!!!
Então, deu uma mochila à minha tia, cheia de tijolos, e disse que com o tempo as costas voltariam ao sítio. E acrescentou:
– Não tenha vergonha de andar com a mochila. É uma coisa perfeitamente normal!
A partir daquele dia, o Sr. “Doutor” Voltaire passou a acompanhar todo o “tratamento”. A solução é estranha, mas foi bem conseguida: a minha tia continua a queixar-se de dores nas costas, mas agora anda direita…

Mónica Machado, 9º A

segunda-feira, outubro 01, 2007

O Bairro II

Eu, o bairro, um senhor: história de um encontro


Rachel Caiano

Num dia de sol muito nublado, resolvi visitar O Bairro para conhecer o Senhor… já não me lembro do nome… Mas depois eu digo quando me lembrar.
Percorri O Bairro inteiro à procura do Senhor Que Não me Lembra o Nome. As horas passavam e não o encontrava, até que conheci o Senhor Juarroz, que por acaso era o Senhor que eu procurava.
O Senhor Juarroz convidou-me então para ir a casa dele e eu aceitei, apesar de já ser tarde e eu ter que ir dormir, porque no dia seguinte ia viajar outra vez.
A casa era… era… vazia! Foi então que perguntei ao Senhor… Senhor Que Já Me Esqueci o Nome Outra Vez, por que razão a casa dele estava vazia e ele respondeu-me que precisava de espaço para pensar como havia de saltar. Depois convidou-me a ficar em sua casa naquela noite e eu aceitei.
Era tarde e fui-me deitar, então, no quarto de hóspedes, mas não era bem um quarto, era um vazio. Não sabia bem em que lado do vazio me havia de deitar, mas por fim lá me encontrei um nada onde encostar a cabeça e adormeci.
De manhã, encontrei o Senhor Juarroz (ao acordar lembrei-me outra vez do nome) a dar saltos na sala. Saí imediatamente para que ele ficasse com mais vazio para onde saltar.

Regressei ao meu mundo com vontade de voltar ao Bairro.

Daniel Borges, nº 5


Rachel Caiano


Há muito tempo que estava curiosa para visitar o bairro onde o Senhor Kraus vivia, pois tínhamos trocado correspondência.
Num dia com um sol radiante, consegui entrar, a muito custo, no bairro, pois havia um enorme engarrafamento. Quando cheguei fui procurá-lo e encontrei-o a escrever as suas crónicas para enviar para o jornal.
Chamei, chamei e só passada uma hora é que deu conta que eu estava ali. Cumprimentou-me e pediu-me mil desculpas. Em seguida, fomos conhecer o bairro e os vizinhos: apresentou-me o Senhor Calvino, o Senhor Henri, o Senhor Juarroz, o Senhor Brecht e o Senhor Valéry.
Chegámos cansados de percorrer todo o bairro a pé, já que nenhum carro conseguia circular. O Senhor Kraus explicou-me que o engarrafamento era causado pelo facto de todos estarem a tentar ir para a sala de espectáculos do Srenhor Brecht. As pessoas acorriam em massa para ouvir as suas histórias.
Depois falou-me do que estava a escrever: as crónicas sobre a arrogância das pessoas que tinham poder, o que pensavam quando as eleições estavam próximas, as fraudes que aconteciam durante as eleições, a manipulação das sondagens…
O Senhor Kraus é muito realista, mas eu gosto que as pessoas sejam assim. Ainda escrevemos um artigo juntos, só que, por infelicidade, tive que me vir embora.
Adorei o meu dia no bairro, na companhia do Senhor Kraus, e prometi voltar lá em breve.

Liliana Almeida, nº 11